Era uma vez um homem que não queria conflitos.
Sério, ele só desistiu da humanidade e passou a viver recluso interagindo apenas com as pessoas essenciais, como prestadores de serviço e relações profissionais. Na real, o homem já havia sofrido muito, tanto que nem valeria a pena listar a série de eventos que o levaram a se tornar "antissocial".
Basicamente ele só queria viver o que lhe restasse de vida em paz.
E embora seus amigos e sua família tentassem a todo custo "trazê-lo de volta", ele estava decidido a se isentar de todo e qualquer assunto.
Deletou todas as redes sociais.
Afastou todos os ficantes e não deu mais nenhuma abertura para qualquer tipo de relacionamento amoroso.
Pagava as contas pelo celular e não atendia mais o telefone.
Ele cogitou o autoextermínio mas apesar de tudo, ainda existiam pequenos prazeres que o faziam querer continuar respirando. Uma boa leitura. Filmes e séries. Cinema. Teatro. Desde que fosse sozinho.
Um belo dia ele foi demitido. Sua reação foi a mais retumbante apatia.
Voltou para casa e acariciou seu gato. Ah sim, ele tinha um gato, outra coisa que o mantinha preso à realidade. Infelizmente o felino morreu de repente. Problemas renais. Na veterinária, disseram que ele deveria ficar internado e aquela foi a última vez que eles se viram. Não houve possibilidade de despedida.
O homem era órfão de pai, mas tinha uma mãe fanática religiosa que morava em outra cidade e parecia fazer um esforço para se importar com a ele, mas a verdade é que ela nunca aceitara sua sexualidade e isso criou um abismo entre eles que nunca foi reparado.
O homem foi despejado por falta de pagamento, mas ele não reclamou. Ele não queria conflitos.
Ele se abrigou num sobrado abandonado, mas logo foi encontrado por outros moradores de rua, espancado e expulso, mas ele não reagiu. Ele não queria conflito.
Numa noite fria ele olhou para a lua vistosa e se lembrou do roteiro que havia escrito no computador ao qual fora obrigado a vender meses antes. (Ele nunca soube que esse roteiro teria se tornado uma série de sucesso, fazendo dele rico e famoso, mas a essa altura, não se importava mais. Ele não lutou para que isso acontecesse. É um mercado muito competitivo e ele não queria conflito).
Encostado num canto frio de uma rodoviária, ele se lembrou de sua infância e até se permitiu um sorriso.
Em algum momento da sua vida, fora feliz.
Ele tinha amigos e parentes distantes que provavelmente o acolheriam, mas ele estava cansado da cobrança das pessoas, das perguntas intrusivas, da necessidade de se provar socialmente para pertencer a algo criado por alguém em algum momento, algo que separou as pessoas pelo que elas têm e não pelo que ela são.
Na naquela noite ele sonhou com o rapaz pelo qual fora apaixonado, e embora tenham tido um belo romance, essa é outra história que também não acabou bem. Mas no sonho era diferente. No sonho tudo tinha dado certo, eles moravam juntos com seus gatos numa casa linda, com uma enorme biblioteca e uma sala de cinema privativa. Foi o melhor sonho de toda a sua vida.
Ele morreu de hipotermia naquela noite.
Identificado o corpo, sua mãe foi notificada. Ele enterrou o filho numa manhã e à noite pagava o dízimo da igreja que frequentava. Em seu íntimo, ela acreditava que ele escolheu o pecado e se foi essa a vontade de uma entidade maior, então estava tudo bem.
Houve um burburinho com comentários maldosos sobre ele. Uma ou outra palavra vazia de compaixão. Em pouco tempo todos já haviam esquecido.
Ninguém sentiu a falta dele.
Ninguém lembrava o nome do gato que ele tanto amava.
O rapaz pelo qual ele era apaixonado, não foi capaz de verter lágrimas ou honrar sua memória.
O mundo continuou girando.
As pessoas seguiram fingindo bondade enquanto seguiam se machucando.
E outras histórias continuaram nascendo.
Foto de Sasha Freemind na Unsplash
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