O Sonho do Monstro


O monstro nasceu no lodo. 


Criado por entre os juncos pegajosos da mata, nunca conheceu a temperatura amena de um abraço, apenas o hálito das noites congelantes, geralmente acompanhado do vento afiado envolvendo-o com a chuva por entre as folhas apodrecidas, encolhido na madeira das árvores que dividia com vermes e insetos, a única família que conhecera. 

Certa vez o monstro teve um sonho estranho, onde sua aparência era irreconhecível mas havia outros como ele, vivendo em sociedade, construindo abrigos sofisticados e quentes, gerando conforto através de laços do que eles chamavam de amizade, constituindo lares onde se reproduziam e permaneciam num ciclo de estudos, trabalho, produção e lucro, e embora desfrutassem de relativas regalias, não havia igualdade. Enquanto alguns precisavam lutar muito para obter o mínimo, outros tinham a sorte de nascer nas famílias certas e/ou fazer as conexões necessárias para obter vantagens que na maioria das vezes vinha da exploração do trabalho alheio. 

O monstro não entendeu bem o tipo de relação que essa sociedade estabeleceu. Eles tinham diversas culturas, diferentes religiões e crenças, e até mesmo a ausência delas. Muitos se tornavam fanáticos e reproduziam atitudes cruéis repassadas através de escrituras obsoletas. 

O ponto de ebulição do progresso fez o planeta colapsar, alterando temperaturas e causando desastres naturais. Máquinas incompreensíveis para a maioria deles começaram a pensar por si próprias e decidir por eles o que era bom. O contraste entre opulência e miséria se tornou comum. Apavorados com a possibilidade de perder suas posses, os membros desse povo se agarravam a qualquer crença, qualquer líder que se levantasse e dissesse o que queriam ouvir, mesmo que tivessem que fingir acreditar, fingir inclusive para si mesmos, até transformar aquela ficção numa verdade que os encaixasse dentro do que seria aceitável para manter seus interesses intactos. 

Em seu sonho, o monstro também viu que apesar de tudo, existia muita bondade, gentileza e amor. No entanto ele teve dúvidas sobre o quanto daquilo era genuíno ou apenas outra tática de sobrevivência do grupo. 

Quanto tempo demoraria para que os membros dessa sociedade se autodestruíssem, deixando um mundo devastado no rastro de sua extinção? A compaixão que ele vira em sonho era real ou apenas outra ilusão fabricada nesse grande jogo de interesses?

O monstro acordou num susto, mas logo se sentiu aliviado e com uma palavra pairando em sua mente:

"talvez"

Em seguida ele voltou a se aconchegar por entre as folhas podres enquanto os pingos gelados resvalaram em sua face em outra noite silenciosa até que voltasse a dormir. Todavia, diferente de tantas outras vezes, o frio não o incomodou. 

E ele estava sorrindo. 


Foto de Alexander Van Steenberge na Unsplash

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